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Anorexia nervosa: poder e liberdade em confronto

A Anorexia Nervosa é uma “velha” doença psiquiátrica que nas suas formas mais graves pode determinar um desfecho fatal.

O Manual Diagnóstico da Associação Psiquiátrica Americana, na sua versão actualizada (DSM-5), que para o bem e para o mal, é a referência mundial no diagnóstico das doenças mentais, define três grandes critérios para a Anorexia Nervosa:

  1. Restrição persistente da ingestão calórica com consequente perda de peso significativa.
  2. Medo intenso de aumentar o peso ou de engordar.
  3. Perturbação da imagem corporal na sua forma ou na apreciação do peso corporal mesmo que tenha ocorrido uma perda de peso considerável.

Estudos epidemiológicos realizados em Portugal desde os anos 90 apontam para uma prevalência estimada da doença de 0,4% em mulheres jovens, o que está dentro dos cálculos habituais noutros países do primeiro Mundo ocidental. Muito mais frequente nas mulheres que nos homens, a proporção pode variar entre 7:3 a 9:1.

Ainda que a prevalência da doença, nas suas formas mais graves não esteja a aumentar, parece haver uma tendência para ocorrer com maior frequência em pessoas mais novas (crianças) e com maior frequência também em rapazes.

Sendo uma “velha” doença tem tido uma expressão sintomática diferente ao longo da história, adaptando-se aos contextos culturais de cada época nomeadamente, na relação com a religiosidade, ascetismo ou até à estética moderna da magreza.

Como em muitas outras doenças psiquiátricas, a sua origem em cada pessoa pode ser muito diversa mas, no momento em que o processo de doença se desencadeia, o caminho para a produção e apresentação dos sintomas acaba por ser muito semelhante, autorizando assim que se possa falar no diagnóstico de Anorexia Nervosa com uma identidade clínica própria.

Para as jovens com Anorexia Nervosa e para as famílias, o percurso na doença e no tratamento é duro, longo, e geralmente muito sofrido, com avanços e recuos, pequenas alegrias e deceções, expectativas sonhadas e frustradas e sempre a sensação de que tudo é muito lento, como lenta é cada refeição.

Para os técnicos que ligam com esta doença, os sentimentos não são muito diferentes, na medida em que as jovens com Anorexia Nervosa representam um desafio constante não só à omnipotência terapêutica, como sobretudo, e a um nível mais abaixo, ao questionamento da própria capacidade para tratar.

Como médico psiquiatra, com alguma experiência nesta área, aprendi muito com as jovens com Anorexia a incrementar a minha humildade terapêutica, porque os desafios que cada uma me foi colocando nem sempre e por vezes quase nunca, me senti seguro na resposta que acabei por dar ou até não dar.

Por outro lado, aprendi também nesta doença, a verdadeira diferença entre a liberdade e poder, e a forma como estas duas aspirações humanas se contrapõem e complementam, como um sistema de vasos comunicantes.

O controlo sobre a ingestão alimentar a um nível tão absoluto como ocorre na Anorexia Nervosa, tendo como consequência o controlo ou desejo de controlo do peso e formas corporais, representa um ato de enorme capacidade de poder sobre o corpo. A maior parte das pessoas não consegue (felizmente) ter esta capacidade. Contudo, quem consegue ter este poder sobre o corpo perde a liberdade de usufruto da sua própria vida na relação consigo própria, com os outros e com a natureza. Em consequência a sua vida subjetiva fica totalmente absorvida por este objetivo e por todos os comportamentos necessários para o atingir. O pensamento, a perceção, as emoções e sentimentos ficam quase completamente focalizados na comida, no peso e no corpo. Definitivamente a vida mental fica capturada pelo exercício de poder sobre o corpo. Esta é a armadilha contranatura que tornará prisioneira a jovem anoréctica. Esta é na sua essência a doença.

Afinal, como sempre soubemos, a doença opõe-se à liberdade e a liberdade, sob qualquer forma, é aquilo que perdemos quando estamos doentes.

Na Anorexia Nervosa ganha-se poder mas perde-se liberdade e esse é o preço que pagamos quando nos opomos à natureza.

Para terminar, penso que o corpo que transportamos e que devemos estimar na pessoa que somos, é o objecto mais complexo que a natureza produziu. Para dele usufruirmos não devemos contrair as leis da natureza que o fazem funcionar. A vida saudável, agora um conceito em moda, necessita também de uma certa ecologia do corpo

Dr. Pedro Varandas

Psiquiatra

Diretor Clínico das Irmãs Hospitaleiras Lisboa

Artigo publicado na revista Visão

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