por Frei Hermínio Araújo
«O cuidado compassivo: promotor da esperança» foi o tema da VIII Jornada Hospitaleira de Pastoral da Saúde. Ele foi também orientação para a Conferência Inaugural acerca dos «Lugares e Dinâmicas de Esperança». Lugar de esperança é cada coração humano que acolhe e partilha esperança; dinâmica de esperança é tudo o que a promove. Ir por este caminho interior significa ver a experiência espiritual enquanto dinâmica de esperança, fundamento de outras dinâmicas. A tradição cristã entende a esperança como uma das três virtudes teologais. As outras são a fé e o amor (caridade). Elas têm a sua origem em Deus. A esperança, «a pequena esperança», nas palavras do poeta francês Charles Péguy (1873-1914), «arrasta tudo consigo». «Que me é permitido esperar?», pergunta o filósofo Immanuel Kant (1724-1804). Com a linguagem deste pensador (o conceito de crítica, presente nas suas obras principais), fixemo-nos em três tópicos: 1. Para uma crítica da razão antropológica; 2. Para uma crítica da razão eclesial; 3. Para uma crítica da razão hospitaleira.
1. Para uma crítica da razão antropológica – «Vita Contemplativa» é o título do mais recente livro de Byung-Chul Han (Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2023), filósofo e ensaísta sul-coreano, atualmente professor de Filosofia na Universidade de Artes de Berlim. «Vita contemplativa» é uma alternativa em relação ao conceito de vita activa, de Hannah Arendt (1906-1975). A teoria de Han acerca da vida contemplativa explicita-se com o conceito de inatividade. O título completo deste ensaio filosófico é: «Vita Contemplativa. Ou sobre a Inatividade». Han, em «Vita Contemplativa», aprofunda muitos conteúdos já abordados noutros textos, como, por exemplo, em «A Sociedade do Cansaço». Para este autor, o cansaço do Ocidente liga-se a uma patologia neuronal. Basta pensar na depressão, nas perturbações de atenção devidas à hiperatividade, e a tudo o que está relacionado com o desgaste profissional. Um dos capítulos de «A Sociedade do Cansaço» é sobre a pedagogia da visão enquanto pressuposto em relação à vida contemplativa. Convém sublinhar que o tema do olhar e do ver em profundidade é central no que diz respeito à experiência contemplativa. O conceito de inatividade em Han aproxima-se de intensidade: “uma forma esplendorosa da existência humana, que hoje empalideceu e se converteu numa forma vazia da atividade” (p. 11). Todo o primeiro capítulo de «Vita Contemplativa» é sobre as perspetivas da inatividade (pp. 11-33). De sublinhar, o que o autor diz em relação à poesia enquanto inatividade: “Na poesia, a linguagem converte-se no modus da contemplação, torna-se inativa. […] Aturdidos com o delírio de informação e comunicação, afastamo-nos da poesia como contemplação da linguagem e começamos mesmo a detestá-la” (p. 27). Han apresenta no seu texto algumas das afirmações centrais da história da cultura, no que diz respeito à contemplação (pp. 59-61). “A existência humana só se concretiza na vita composita, ou seja, na interação da vita activa com a vita contemplativa, afirma Han (p. 86). Estamos a perder cada vez mais a capacidade contemplativa. Nesta perda está a causa da atual crise religiosa enquanto crise de atenção. Byung-Chul Han afirma, categoricamente: “Se a vita activa não incorporar a vita contemplativa, degenera em hiperatividade e termina no burnout, não só da psique, mas também de todo o planeta” (p. 87). Raciocínios como este fazem com que esta seja uma das vozes filosóficas a ser escutada.
2. Para uma crítica da razão eclesial – Tomáš Halík, filósofo e teólogo checo, na sua mais recente obra – A tarde do cristianismo. O tempo de transformação (Prior Velho, Paulinas Editora, 2022) – ajuda-nos neste segundo tópico. A Igreja contemporânea carece de renovação espiritual, de reforma, tal como aconteceu noutras épocas. Este titulo – A tarde do cristianismo – é inspirado em Carl Gustav Jung, na metáfora escolhida pelo fundador da psicologia analítica para descrever a dinâmica de uma vida humana individual. Jung comparou o período de uma vida humana ao curso de um dia. A manhã da vida corresponde à juventude e ao início da idade adulta. Chega depois a crise do meio-dia. Segue-se a tarde da vida, a idade madura enquanto um tempo oportuno para o desenvolvimento da vida espiritual (pp. 59-61), um tempo de transformação (subtítulo). Culturalmente, vivemos numa mudança de época, também para a Igreja. O texto de Halík é um contributo muito lúcido para a necessária crítica da razão eclesial. O capítulo XIII é acerca da “espiritualidade como paixão da fé”. Afirma Halík: “A tarefa que aguarda o Cristianismo nesta tarde da sua história consiste em grande medida no desenvolvimento da espiritualidade – e uma espiritualidade cristã recém-compreendida pode dar um contributo significativo à cultura espiritual da humanidade de hoje, muito para lá das fronteiras da Igreja” (p. 226). Noutro capítulo (XV), diz o mesmo autor: “ […] nunca devemos esquecer o próprio coração do Cristianismo: as três virtudes teologais da fé, esperança e amor. É assim que Deus está presente no nosso mundo. É necessário redescobri-las: distinguir fé de convicção religiosa, esperança de otimismo e amor de mera emoção” (p. 274). Halík refere-se à ação pastoral enquanto um ministério espiritual, um acompanhamento espiritual. «O espiritual diz aqui respeito ao sentido, seja o sentido da vida como o significado de uma particular situação de vida” (p. 293). Estamos no cerne desta reflexão: esperança e sentido. E um pouco mais adiante: “O caminho real do acompanhamento espiritual, o seu alfa e ómega, é o cultivo de uma atitude contemplativa em relação ao mundo e à própria vida. O acompanhamento espiritual não pode ser útil a ninguém se não ensinar a prática da sintonização interior, a arte de abandonar a vida superficial e ir mais fundo […]” (p. 295). É a arte da contemplação.
3. Para uma crítica da razão hospitaleira – O poeta Sebastião da Gama ajuda-nos neste último tópico. Na sua curta vida de poeta publicou o tríptico Serra-Mãe (1945), Cabo da Boa Esperança (1947) e Campo Aberto (1951). Ruy Ventura, também poeta, lê estes textos a partir da Fé, Esperança e Amor enquanto virtudes poéticas, existenciais e teologais (Ruy Ventura, A Chave de Sebastião da Gama, 2017, p. 53). Fixemo-nos no tríptico Serra-Mãe – Cabo da Boa Esperança – Campo Aberto. As epígrafes da sua autoria são poemas programáticos, indicadores da sua experiência poética e, ao mesmo tempo da sua experiência espiritual. No livro Serra-Mãe: «A corda tensa que eu sou, / o Senhor Deus é quem / a faz vibrar… // Ai linda longa melodia imensa!…/ – Por mim os dedos passa Deus e então / já sou apenas Som e não / se sabe mais da corda tensa…». Em Cabo da Boa Esperança: «Que me importa, meus versos, que vos tomem / (e eu vos tome também) por chaves falsas, / se vós me abris as portas verdadeiras?». E no livro Campo Aberto: «Tudo frutificou: o campo estava aberto, / deu conchego e raiz a todas as sementes.». Estamos na dinâmica do dom. Por isso, da esperança, e também da fé e do amor. Estamos no caminho da hospitalidade, de quem acolhe e partilha. O poema de Sebastião da Gama, editado postumamente, sintetiza todo o conteúdo do que aqui fica dito: «Pelo Sonho é que vamos, / comovidos e mudos. / Chegamos? Não Chegamos? / Haja ou não haja frutos, / pelo Sonho é que vamos. // Basta a fé no que temos. / Basta a esperança naquilo / que talvez não teremos. / Basta que a alma demos, / com a mesma alegria, / ao que desconhecemos / e ao que é do dia-a-dia. // Chegamos? Não chegamos? / – Partimos. Vamos. Somos.» Somos! Somos lugares de esperança! Cultivamos a arte da busca interior, a arte da contemplação, capacitando-nos para dinâmicas de esperança cada vez mais consistentes, porque nos damos «com a mesma alegria, / ao que desconhecemos / e ao que é do dia-a-dia». Percebemos a ligação entre vida ativa e vida contemplativa. Percebemos que a nossa ação hospitaleira se fundamento na contemplação. Por isso, «Partimos. Vamos.» Aliás, só assim entendemos Aquele que nos diz: «Quantas vezes o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.» (Mt 25, 40).
Frei Hermínio Araújo
*Este artigo é um resumo da conferência inaugural da VIII Jornada Hospitaleira de Pastoral da Saúde.