Entre a sombra e a luz: o trabalho transformador do projeto Consentido
São nove horas da manhã e preparamo-nos para enfrentar o habitual caos de trânsito de um dia da semana na hora de ponta. Reúno-me com a equipa do Consentido nas instalações do Gabinete Integrado de Serviços de Saúde Mental (Gis) para mais um dia de visitas domiciliárias. Felizmente, a equipa sabe perfeitamente como organizar o roteiro de modo a evitar os engarrafamentos – conhece a cidade e os seus costumes como ninguém. E é também desta forma (como mais ninguém) que vai conhecendo cada uma das pessoas que acompanha – algumas desde há poucas semanas, outras há mais de dez anos.
O Consentido é uma equipa comunitária de saúde mental, uma das mais antigas em funcionamento em Portugal, pertencente à Casa de Saúde do Bom Jesus. Integra desde 2017 a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados em Saúde Mental, dando suporte, neste momento, a quarenta e quatro utentes previamente referenciados pelos psiquiatras que os acompanham.
Prestar apoio comunitário em saúde mental tanto pode significar visitar as pessoas nas suas casas e perceber como estão e do que necessitam, como pode significar acompanhá-las ao hospital, à farmácia, aos serviços sociais ou a um supermercado. Apoiá-las tanto pode significar fazer vigilância da toma da medicação, como ensinar estratégias de regulação emocional e resolução de conflitos, como ajudar a cuidar da higiene pessoal e a preservar a higiene da casa. Apoiar estas pessoas significa que a distância profissional por vezes cai por terra, para se levantar uma atitude familiar de humanidade comum e de respeito. Acima de tudo, de respeito. As pessoas com perturbações psiquiátricas graves são frequentemente relegadas para um lugar de marginalização. Sem trabalho, com míseros rendimentos, sem uma ocupação estruturada, sobra-lhes o tempo e faltam-lhes muitas vezes os motivos para se sentirem capazes e dignificadas. Falta-lhes uma sociedade que aceite a importância de pessoas que não produzem valor económico, mas encerram em si mesmas o valor intrínseco inerente a cada um de nós. A equipa do Consentido procura colmatar as ausências que estas pessoas experienciam no seu dia-a-dia: ausência de conforto, de paz de espírito, frequentemente ausência de família, ausência de afetos.
Durante alguns meses, tive a oportunidade de acompanhar esta equipa e de assistir “por dentro” à beleza deste trabalho, que considero fundamental. Sou invadida frequentemente pela memória de uma destas pessoas a tocar piano. Tínhamos conversado sobre aspetos importantes da sua vida e, no fim, perguntou-me se eu gostaria de ouvir um pouco de piano. Assumi que seria para aligeirar o ambiente. Estava enganada. A pessoa sentou-se no piano, de costas para mim, o sol batia-lhe nas costas e no cabelo e parecia fazê-lo brilhar, como se fosse um grande pianista numa sala de espetáculos. Moveu-se sobre o piano com uma assertividade e elegância únicas, respirava de forma orgânica, piano e pessoa eram um único órgão vital a escorrer raiva e medo e alegria e esperança, tudo ao mesmo tempo. Quando terminou, olhamos um para o outro e soubemos ambos que tinha acontecido algo indizível naquele momento. Senti que, enquanto houver esta possibilidade empática, enquanto for possível comunicar tanta coisa, mesmo sem palavras, o resgate é possível.
É como se existisse o mundo em que a maioria das pessoas se move – o mundo dos saudáveis – e um submundo (tendencialmente invisível) onde se movem estas pessoas. E o Consentido permite uma comunicação entre os dois mundos: resgata desse lugar sombrio pessoas que, frequentemente, já tinham desistido do resgate.
Do ponto de vista psiquiátrico e social, os resultados são evidentes. E não é difícil compreender que assim seja: os utentes sentem, a partir de certa altura, que não estão mais sozinhos, partilham com a equipa do Consentido os seus desânimos e medos, os seus lugares de desespero, e recebem de volta esperança, cuidado, afeto, segurança. O que é isto senão uma família? Não sou eu que o digo, são eles
Matilde da Silva Gomes | Médica Interna de Psiquiatria no Hospital de Braga