As Perturbações do Comportamento Alimentar uma visão atual | Hospital de Dia | RIPA
(Resposta Integrada para as Perturbações Alimentares)
As sensações existem porque temos um corpo. Tudo é sentido no corpo e este tem memória do que vivência funcionando como uma fita que regista e armazena todas as experiências emocionais que vão ocorrendo ao longo da vida. Biologicamente o nosso corpo tende para a hemóstase, uma constância de condições internas, físicas e químicas mantidas para um funcionamento ideal do organismo. Existem muitas variáveis que precisam se ser reguladas constantemente de acordo com a mudança no ambiente, na dieta, na atividade do ser vivo e são estes mecanismos homeostáticos, desde que na sua regulação contínua vão construindo o registo dos sentimentos homeostáticos em cada momento.
A alimentação é a memória mais antiga e a primeira experiência sensorial complexa, pelo que qualquer interferência nesta experiência pode impactar o equilíbrio do corpo e condicionar a perceção de si. Uma vez que segundo os neurocientistas Hanna e António Damásio “os sentimentos homeostáticos são a origem da consciência”, as pessoas que desenvolvem uma perturbação do comportamento alimentar (PCA) tem já em si um condicionamento dos sentimentos de hemóstase e por isso uma alteração na capacidade de leitura dos sinais que o corpo emite. Consequentemente poderão ocorrer modificações na consciência e na forma como o individuo vê e sente o seu corpo.
Na mesma linha de pensamento exposta por estes investigadores, “a consciência é formada por contínuos sentimentos homeostáticos que revelam à pessoa qual o seu estado, em cada momento influenciando decisivamente a sua vida subjetiva.
Na perturbação do comportamento alimentar (PCA) mais comum, a anorexia, existem problemas na interocepção e na propriocepção que dificulta a regulação e a interpretação dos sinais do corpo “o meu corpo não sou eu”.
“A interocepção é a capacidade do cérebro de sentir as sensações internas do corpo, como fome, sede, cansaço e stress. É por meio dessa perceção que podemos avaliar a nossa própria saúde e bem-estar e tomar medidas para cuidar de nós mesmos”.
A consciência de si que se forma pela hemóstase corporal é um processo bidirecional, portanto inclui o envio de sinais do interior do organismo para o sistema nervoso e a resposta subsequente do sistema nervoso a esses sinais. Esta interação é possibilitada pelo facto de o sistema nervoso estar localizado inteiramente dentro do corpo.” (Hanna e António Damásio)
“Já a propriocepção é a capacidade do cérebro de perceber a posição e o movimento do nosso corpo no espaço. É graças a essa perceção, que podemos caminhar, correr, dançar e realizar outras atividades que requerem coordenação e equilíbrio.”
As pessoas com PCA alteram a quantidade de nutrientes que ingerem e o corpo fica doente, não há recuperação psicológica sem melhorar a condição do corpo, sem que se reponha a hemóstase do organismo. Existe uma interligação entre o equilíbrio nutricional e de outras variáveis internas e o bem-estar psicológico dado pelo reconhecimento de sensações que são traduzidas pelo corpo. É neste desconhecimento dos limites internos do seu corpo que existe nas anorexias um pensamento que o equilíbrio e o controlo sobre a sua vida advém da quantidade de alimentos que ingerem.
Estas patologias têm tido diferentes abordagens ao longo dos anos, muitas invocando a pressão da moda e das tendências e ideais de beleza emergentes em algumas sociedades, existindo por isso um pensamento generalizado que estas doentes querem emagrecer porque se sentem “gordas”, quando afinal elas procuram tão somente conhecer bem o seu corpo.
Nos últimos anos outras linhas de pensamento têm vindo a emergir nomeadamente com um autor italiano Giovanni Stanghellini. Segundo este e outros autores as perturbações do comportamento alimentar representam uma disfunção do “embodiment” (corporalidade). Este conceito próximo do conceito de “homeostarie” dos sentimentos do fenomenologista Merleau Ponty, refere-se a como as pessoas experienciam o próprio corpo, que vai para além da simples perceção visual do mesmo, a consciência da existência do corpo em si num espaço ecológico para além de si. Está nesta apreensão na primeira pessoa da sua corporalidade(embodiment)e reconhecimento dos limites do corpo físico que se compreende e se dá significado às experiências vividas.
É com esta nova abordagem que nasce a resposta do Hospital de Dia – RIPA (resposta integrada para as perturbações alimentares) das Irmãs Hospitaleiras Lisboa, um projeto que inicialmente contou com o financiamento do BPI/Fundação La Caixa.
Presentemente conta com o apoio do Portugal Inovação Social 2030- Parcerias para o Impacto, para dar continuidade projeto e poder oferecer esta resposta a mais pessoas com PCA.
RIPA resposta integrada para as perturbações alimentares
Aqui trabalhamos as emoções na sua essência de relação corporal. Para um foco na recuperação do sentido da vida, do gosto em realizar experiências e em estar em relação com os outros.
O processo de recuperação passa por criar num primeiro momento uma relação saudável com o corpo, de aceitação da alimentação como fundamental para viver e para experienciar acontecimentos e relações. No Hospital de Dia promove-se um conjunto de atividades (psicomotricidade; expressão artística, ioga, expressão dramática, terapia ocupacional, relaxamento, desenho projetivo do corpo, tai-chi, dieta e nutrição, psicoterapia individual e grupos terapêuticos) que estimulam o conhecimento do corpo e a interação com um grupo de pares, que em conjunto desafiam medos e exploram vivências.
Segundo a Dra. Dulce Bouça, psiquiatra coordenadora do projeto RIPA: “trabalhamos para que no final as pessoas digam: decidi recuperar a vida, retomar o curso, ir às aulas, ir trabalhar, estar com amigos…”abrir interesses e outros caminhos.”
Neste ano e meio de projeto RIPA, houve uma melhoria no comprometimento funcional associado à doença em todas as utentes, uma redução da sintomatologia depressiva, ansiosa e stress, o que é manifestamente um bom resultado face aos objetivos desta metodologia e uma evidência da recuperação alcançada.
“Recuperar não é só comer, recuperar não é só esforçarmo-nos no que convém… recuperar é ver o corpo a crescer e aceitar, recuperar é continuar não parar persistir e não desistir (…) recuperar é enfrentar o medo, é lutar… (…) não estar parada, a deixar a doença tomar conta de mim”.
Existe em muitas jovens um descontentamento com a realidade que as leva a emagrecer como meio de sentir que controlam a sua vida. Nas anorexias existe uma busca incessante pela perfeição, por quererem corresponder às expetativas que pensam que os outros têm de si. Deixam de conseguir “ouvir” os sinais do seu corpo, as suas necessidades e anseios para focarem todas a sua energia restante numa “corrida” para alcançar menos peso, como se esse fosse o garante do sucesso e do sentido para a vida. “Eu tenho a cabeça a bombardear-me com a restrição e estou constantemente em policiamento e sinto-me insegura e culpada”
Este sentimento de culpa e de necessidade de validação constante do outro por dificuldade em autogerir e controlar as necessidades do corpo, faz com que as anoréxicas estejam numa tristeza profunda e se sintam insuficientes nas relações com os outros. “Preciso que alguém me diga o que posso fazer para ficar feliz”.
É essencialmente na pré-adolescência e com as transformações que começam a acontecer no corpo, que muitas iniciam esta dúvida sobre como está o seu corpo, quais são os limites da sua existência interna e externa, muitas perguntam-se “como se cresce sem desiludir alguém”, uma dificuldade em deixar um corpo até aí conhecido seguro e cuidado por figuras parentais, para um corpo que se transforma, que se autonomiza e tem de se adaptar a novos desafios.
“O corpo é a nossa casa onde temos de nos sentir bem…. a vida estrutura-se dentro do corpo”
Carla Costa
Psicóloga Clínica RIPA